sábado, 29 de setembro de 2012

Feliz com pouco, feliz com muito


CRISTIANE SEGATTO  Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é cristianes@edglobo. (Foto: ÉPOCA)Quem me disse foi um analfabeto, mas poderia ter sido um estudioso das relações humanas: “Quando a gente entra num posto de saúde e é recebido com um rosto de riso, até o sentimento da gente muda. Atenção é uma coisa poderosa”.
Grande, Seu Abelardo! Tive o prazer de conhecê-lo há algumas semanas durante uma reportagem que fazíamos em Arco-Íris, uma cidadezinha de 1,9 mil habitantes no interior de São Paulo. 
Arco-Íris é o município brasileiro que oferece os melhores serviços de saúde pública, segundo uma avaliação do Ministério da Saúde. A reportagem de ÉPOCA chega às bancas no sábado (29).
Chegamos de mansinho, pedindo licença e tentando acalmar os vira-latas que vivem com Abelardo Nunes Magalhães e a mulher, Maria, no sítio do Bairro Toledinho.
Fomos recebidos com sorrisos e curiosidade.

Queríamos acompanhar o trabalho da agente de saúde Teresa Lopes e da auxiliar de enfermagem Suselaine Tozzi. Elas fazem parte do Programa de Saúde da Família (PSF) de Arco-Íris.
Para que a saúde pública de uma cidade seja boa, é preciso investimento e comprometimento de toda a cadeia de profissionais necessários para que o sistema funcione bem (da pessoa que tem o primeiro contato com o paciente até o prefeito).  
Isso é fato, mas ninguém tem tanta capacidade de transformar trajetórias individuais e, de uma em uma, mudar a qualidade de vida de uma população quanto o agente de saúde. Ele percorre as casas, conhece cada morador, leva informações, cuida da saúde e ajuda a organizar a vida.
O PSF de Arco-Íris mereceu nota dez na avaliação do Ministério da Saúde. E despertou minha curiosidade. Por isso, fomos até lá. Na casinha de madeira de Seu Abelardo tive a certeza de que atenção, cuidado, envolvimento devem vir em primeiro lugar em qualquer tentativa de melhorar a saúde de uma população.
A agente de saúde Teresa (em pé) e a auxiliar de enfermagem Suselaine atendem Abelardo no sítio onde ele mora em Arco-Íris, no interior de São Paulo. (Foto: Marcelo Min)
Teresa Lopes é agente de saúde em Arco-Íris há 11 anos. Uma vez por mês, visita Abelardo e Maria para checar se o hipertenso e a diabética estão tomando os remédios direitinho. Num dos encontros, Abelardo reclamou de dor na virilha esquerda.  
Assim que voltou ao único centro de saúde da cidade, Teresa agendou uma consulta com a médica. Na mesma semana, Abelardo foi visto por ela e encaminhado para uma cirurgia de hérnia em Tupã, uma cidade vizinha.  
Quando o visitei, a auxiliar de enfermagem Suselaine cuidava do curativo enquanto Teresa pedia que ele tomasse o antihipertensivo. Abelardo elogiava a atenção que recebia das meninas e o sistema de saúde da cidade e repetia: “Arco-Íris é um pedacinho do céu”.  
Há muito tempo não via uma pessoa demonstrar tanta felicidade, apesar de viver com tão pouco. Uma casinha de madeira, um poço, uma horta. Um cafezinho de garrafa térmica, uma conversa leve, sem pressa. 
Saí com a certeza de que Abelardo e Maria não são felizes com pouco. São felizes com muito.Vivem uma relação harmoniosa, companheira, têm o necessário para comer, recebem constantes cuidados de saúde e, principalmente, atenção. 
Teresa fez questão de me mostrar os desenhos que Abelardo fazia nas aulas de alfabetização. São pinturas coloridíssimas, abstratas, feitas em papel sulfite. Ele tomou o cuidado de plastificá-las para que resistissem aos maus tratos do tempo. 
Abelardo nunca aprendeu as letras, mas têm facilidades com imagens, sinais. Alguns desenhos exibem as poucas palavras que sabe registrar: ideogramas que aprendeu com patrões japoneses nas fazendas da região. 
“A língua portuguesa não entrava na minha cabeça, mas quando a professora colocava uma conta na lousa, tudo ficava fácil para mim. Em vez de escrever, desenhava”, disse, cheio de orgulho. Orgulho compartilhado por Teresa. 
“O agente de saúde é parte da família. Conheço cada um dos moradores. Sei do jeitinho de cada um, dos problemas, das dificuldades”, diz Teresa. Todos os agentes de saúde atendem moradores na pequena área urbana e na zona rural. Hoje podem fazer os percursos de moto ou de carro, mas no início percorriam longas distâncias a pé.  
Mais do que qualquer outro profissional, esses agentes comunitários sabem que saúde não é só remédio e hospital. Nas cidades pequenas, frequentemente precisam atuar em várias frentes. Foram muitas as vidas que Teresa e os colegas ajudaram a melhorar. 
Certa vez, ela estava inconformada com a situação de um doente idoso, que vivia sozinho. Sem renda, ele dependia da ajuda dos vizinhos para comprar comida. Foi Teresa quem descobriu que ele havia trabalhado numa usina durante vários anos. 
Investigou um pouco mais e soube que ele poderia se aposentar se completasse um ano e meio de contribuição ao INSS. Teresa organizou na cidade uma vaquinha para quitar o que era necessário. Do salário dela, saíram alguns meses de contribuição. Depois começou a pedir aos colegas, aos policiais, aos professores.  
Ao final, Teresa levou o homem a um posto do INSS e conseguiu aposentá-lo. Algum tempo depois, chegou uma carta. Quem era a pessoa de confiança que ele chamou para ler o documento? Teresa, é claro. A notícia era ótima: o aviso de que ele tinha cerca de R$ 3 mil numa conta do FGTS.  
Teresa o levou a uma agência bancária na cidade vizinha para sacar o dinheiro e abrir uma caderneta de poupança. Parte do dinheiro foi empregado na realização de quatro desejos de consumo. O trabalhador havia chegado quase ao fim da vida sem a perspectiva de realizá-los. Graças a Teresa, ele se tornou o feliz proprietário de uma TV, uma parabólica, uma cama e um “colchão bom”, como ele dizia.  
Meses depois, o paciente morreu. Teresa ainda se emociona. Ela é uma agente de saúde no sentido mais amplo e nobre do termo. A cada atendimento, contribui não apenas para manter em ordem as condições físicas dos pacientes, mas valoriza e cuida do lado emocional e social. Se sonhamos com uma saúde melhor para o Brasil, precisamos conhecer e valorizar exemplos como esse. 
Depois de muita conversa, pedimos para registrar em vídeo o depoimento de Seu Abelardo. Olhando fixamente para a câmera que via pela primeira vez, ele disse, baixinho:
- Que coisa boa...Uma pessoa como eu, que não é importante, sendo filmada, é uma coisa incrível.
Respondi, mas não sei se ele se convenceu:
- Todas as pessoas são importantes, Seu Abelardo. Não existe gente sem importância.

Arco-Íris se esforça para que todos os moradores recebam atenção. Essa é uma das mais básicas necessidades humanas. A força dessa necessidade ajuda a explicar por que ferramentas do tipo Facebook e Twitter integraram-se às nossas vidas como se fossem indispensáveis. O ser humano precisa ser notado, curtido, paparicado. Quem planeja os serviços de saúde não pode desprezar o poder transformador que a atenção tem. 

O que você acha? Conte pra gente. Queremos ouvir sua opinião.  
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)  
Revista Época

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