Após ser reinaugurada no sábado (29), a Praça Roosevelt, no Centro de São Paulo, amanheceu com pichação nesta segunda-feira (1º). No domingo (30), a praça também havia sido pichada. Segundo a Secretaria Municipal de Segurança Urbana, pasta responsável pela Guarda Civil Metropolitana (GCM), as pichações do domingo foram removida no próprio dia.
A secretaria não se posicionou sobre o novo ato de vandalismo, mas informou que a Guarda Civil Metropolitana (GCM) "possui uma base fixa na Praça Roosevelt que funciona 24h, com vistas à preservação do patrimônio público". Por meio de nota, a secretaria ainda afirmou que "algumas câmeras da Polícia Militar, instaladas em regiões próximas à praça, são visualizadas pela Central de Videomonitoramento da GCM e, além disso, estudos sobre a instalação de novos equipamentos estão em andamento".
A Praça Roosevelt, que antes abrigava moradores de rua e usuários de drogas, teve sua estrutura recuperada e ganhou mais de 260 novas árvores, luminárias, parques de diversão para crianças e novos espaços abertos. Além disso, a praça ganhou quiosques para floricultura, parquinho, banheiro público e base da GCM. As obras custaram R$ 55 milhões.
No entanto, ainda falta construir o batalhão da Policia Militar, que vai ficar perto da Rua Augusta. "Por necessidade da Polícia Militar, houve alterações do projeto e provavelmente vai ser entregue até o fim do ano", afirmou o secretário de Infraestrutura Urbana, Elton Zacharias, no evento de reinauguração.
A praça está mais aberta, tem 25 mil m², sendo que 380 m² são só para cachorros. O "cachorródromo" da nova Roosevelt agradou as pessoas que têm bichos de estimação: o espaço é gramado, tem bancos para os donos sentarem e bebedouro para os animais.
Após inauguração no sábadp, praça amanheceu com pichações no domingo. (Foto: Júlio Costa/Futura Press/AE)G1
Às 5h da manhã o relógio desperta, Simonídio Rosa se arruma e reforça no café da manhã. É sozinho e carregando uma mochila, que pega o ônibus coletivo em Cuiabá, desce no terminal, e enfrenta mais um ônibus que vai deixá-lo em uma esquina próxima à escola. Essa é a rotina normal de muitos estudantes; a única diferença, neste caso, é que o aluno tem 101 anos. "Eu quero é aprender", afirma o aposentado que decidiu voltar à sala de aula e romper os limites da idade.
Morador da capital, Simonídio participa diariamente de um curso de educação para jovens e adultos não alfabetizados. Nem mesmo a distância ou o problema de visão que possui o impedem de ser um aluno frequente. “A coisa mais triste na vida é não saber ler. Quem não sabe ler é como alguém que não fala. Eu já aprendi a escrever o meu nome”, comemora.
“Não gosto de chegar atrasado. E tenho que pegar dois ônibus, por isso saio cedo de casa para não perder a hora da escola e nem do ônibus”. A residência fica no bairro Umuarama e a Escola Estadual Almira Amorim, no bairro CPA III, onde estuda das 7h às 11h.
Simonídio conta que estuda há mais de dois anos e aprendeu a escrever o seu nome completo. Porém, já consegue ler várias palavras escritas com letras grandes já que enfrenta dificuldades por conta de problemas na visão. Com o bom humor sendo uma das suas principais características, Simonídio rebate em seguida: “Vou fazer o que em casa? Tenho problemas, enfrento e amo demais estar aqui [na escola]”.
O importante é não depender de ninguém. Faço tudo sozinho"
Simonídio Rosa
Orgulhoso, conta que é o aluno mais velho da escola e que nasceu em em 13 de julho de 1911. Contudo, ressalta que perdeu o registro de identidade original emitido no Rio de Janeiro e ao solicitar a emissão de um novo documento, em Várzea Grande, não percebeu que o registraram com a data de 13 de julho de 1941.
A sala de aula é composta por alunos jovens, idosos e também deficientes. Para o idoso, a integração é o seu grande estímulo nas aulas que são direcionadas para cada um de acordo com as necessidades. “Eles me respeitam, me tratam muito bem. Só não gosto de bagunça na sala”, diz aos risos.
Nascido no Rio de Janeiro, criado na roça, o aposentado foi para Mato Grosso na década de 70 para trabalhar e deixou oito irmãos no RJ. Já casou duas vezes, não tem filhos, mas criou quatro enteados e tem duas netas. Atualmente mora com a esposa Ana Maria, de 50 anos, e um enteado de 20 anos.
A motivação em enfrentar uma sala de aula, destaca Simonídio, vem da vontade em “adquirir sabedoria, conhecimento e ser pastor”. Há 50 anos ele é evangélico e não perde também nenhuma aula da escola bíblica que ocorre na igreja aos domingos pela manhã.
A independência também integra sua vontade em enfrentar os desafios que a idade lhe impõe. “O importante é não depender de ninguém. Vou ao banco, supermercado, pego ônibus e pago as minhas continhas. Faço tudo sozinho”.
Simonídio pega dois ônibus para chegar à escola
em Cuiabá (Foto: Kelly Martins/G1)
Por outro lado, o aposentado confirma que não são todos que apóiam a sua jornada de estudante e alguns até o criticam. Ele diz que familiares afirmam que está “andando à toa por aí. Já outros são por medo de acontecer algo”. Isso porque, há alguns anos, o aposentado foi atropelado em Cuiabá e passou por cirurgias que culminaram em problemas de saúde que ele sofre até hoje.
Mas, com 101 anos muito bem vividos, alguns sonhos ainda não se perderam no caminho. Simonídio Rosa ainda tem vontade de ter um filho e se reencontrar com a família que deixou no Rio de Janeiro, com a qual diz ter tido o último contato em 1991. Questionado sobre o que ainda falta em sua vida ou a principal meta antes de morrer, o aposentado não tem dúvida: “Um bom estudo, casa, e dinheiro na conta”.
A professora Bertulina Miranda observa que o histórico do centenário tem servido de referência para muitos alunos que pensam em abandonar a sala de aula e até mesmo como desafio no ensino. Ela ressalta que o trabalho é feito conforme a realidade de cada aluno e isso trazido bons resultados.
O historiador britânico Eric Hobsbawm morreu de pneumonia nesta segunda-feira (1º) aos 95 anos no hospital Royal Free de Londres, informou sua família.
O intelectual marxista é considerado um dos maiores historiadores do século XX e escreveu "A era das revoluções", "A era do capital", "A era dos impérios", "Era dos extremos", entre outras obras.
Ele também era um entusiasta e crítico do jazz, escrevendo resenhas para jornais sobre o gênero musical e publicando o livro "História social do jazz".
Sua filha, Julia Hobsbawm, disse: "Ele morreu de pneumonia nas primeiras horas da manhã em Londres. Ele fará falta não apenas para sua esposa há 50 anos, Marlene, e seus três filhos, sete netos e um bisneto, mas também por seus milhares de leitores e estudantes ao redor do mundo".
"Até o fim, ele estava se esforçando ao máximo, ele estava se atualizando, havia uma pilha de jornais em sua cama", completou a filha.
Na manhã desta segunda-feira, Julia escreveu em seu perfil no Twitter que se sentia "comovida" pela "gentileza e pelas condolências de amigos e desconhecidos hoje pelo meu amável e incomparável pai" (leia o tuíte, em inglês).
Seu pai era britânico, descendente de artesãos da Polônia e Rússia, e a família de sua mãe era da classe média austríaca.Trajetória
Eric John Ernest Hobsbawm nasceu de uma família judia em Alexandria, no Egito, em 9 de junho de 1917.
Hobsbawn cresceu em Viena, capital da Áustria, e em Berlim, capital da Alemanha.
Ele aderiu ao Partido Comunista aos 14 anos, após a morte precoce de seus pais. Na ocasião, ele foi morar com seu tio.
Na escola, ele informou o diretor que ele era comunista e argumentou que o país precisava de uma revolução.
"Ele me fez umas perguntas e disse: 'Você claramente não faz ideia do que está falando. Faça o favor de ir à biblioteca e veja o que consegue descobrir'", disse em uma entrevista à BBC em 2012. "E então eu descobri o Manifesto Comunista [de Karl Marx] e foi isso", relatou, indicando o começo de sua formação marxista.
Em 1933, quando Hitler começava a subir no poder na Alemanha, Hobsbawm foi para Londres, na Inglaterra, onde obteve cidadania britânica.
O historiador se filiou ao Partido Comunista da Inglaterra em 1936 e continuou membro da legenda mesmo após o ataque das forças soviéticas à Hungria em 1956 e as reformas liberais de Praga em 1968, embora tenha criticado os dois eventos. O ex-líder do partido Neil Kinnock chegou a chamar Hobsbawm de "meu marxista predileto".
'Muito comovida pela total gentileza e pelas
condolências de amigos e desconhecidos hoje
pelo meu amável e incomparável pai', escreveu
Julia na manhã desta segunda (Foto: Reprodução)
Anos depois, ele disse que "nunca havia tentado diminuir as coisas terríveis que haviam acontecido na Rússia", mas que acreditava que, no início do projeto comunista, um novo mundo estava nascendo.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Hobsbawm foi alocado a uma unidade de engenharia em que foi apresentada a ele, pela primeira vez, a classe proletária.
"Eu não sabia muito sobre a classe proletária britânica, apesar de ser comunista. Mas, vivendo e trabalhando com eles, pensei que eram boas pessoas", disse à BBC em 1995.
O historiador aprovou neles a "solidariedade, e um sentimento muito forte de classe, um sentimento de pertencer junto, de não querer que ninguém os derrubasse".
Hobsbawm afirmou que ele tinha vivido "no século mais extraordinário e terrível da história humana".
Ele veio ao Brasil em 2003 participar da primeira edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), evento do qual foi estrela.
Hobsbawm estudou no King's College de Cambridge e começou a dar aula na Universidade de Birkbeck em 1947, mais tarde tornando-se reitor da instituição.
Ele também passou temporadas como professor convidado nos Estados Unidos e lecionou na Universidade de Stanford, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e na Universidade de Cornel.
Em 1998, ele recebeu o título de Companhia de Honra. O prêmio, raramente concedido a historiadores, o colocou ao lado de ilustres como Stephen Hawking, Doris Lessing e Sir Ian McKellan.
Seu colega historiador A.J.P. Taylor, morto em 1990, disse que o trabalho de Hobsbawm se destacava pelas explicações precisas dos acontecimentos pelo interesse em pessoas comuns.
"A maior parte dos historiadores, por uma espécie de mal da profissão, se interessa somente pelas classes mais altas e pressupõe que eles mesmos fariam parte destes privilegiados se tivessem vivido um século ou dois atrás - uma possibilidade muito remota", escreveu Taylor. "A lealdade do Sr. Hobsbawm está firmemente do outro lado das barricadas", disse.
Eric Hobsbawm durante uma feira do livro em
Leipzig, em 1999 (Foto: Eckehard Schulz/AP)
Obras
O primeiro livro de Hobsbawm, "Rebeldes primitivos", publicado em 1959, é um estudo dos que ele chamava de "agitadores sociais pré-políticos", incluindo ligas de camponeses sicilianos e gangues e bandidos metropolitanos, um exemplo de seu interesse pela história das organizações da classe trabalhadora.
No mesmo ano, ele escreveu uma obra sobre jazz e começou a colaborar como crítico para a revista "New Statesman" usando o pseudônimo Francis Newton, em homenagem ao trompetista comunista que acompanhava a cantora americana de jazz Billie Holiday.
Em 1962, ele publicou "Era da revolução", primeiro de três volumes sobre o que chamou de "o longo século XIX", cobrindo o período entre 1789, ano da Revolução Francesa, e 1914, começo da I Guerra Mundial. Os seguintes foram "Era do capital" (1975) e "Era dos impérios" (1987).
O quarto livro da sequência, "Era dos extremos" (1994), retratou a história até 1991, com o fim da União Soviética. Ele foi traduzido para quase 40 línguas e recebeu muitos prêmios internacionais.
Suas memórias, publicadas quando tinha 85 anos, elencaram os momentos cruciais na história europeia moderna nos quais ele viveu, e também foram um best-seller.
Seu último livro é "Como mudar o mundo", de 2011, e é um compilado de textos escritos, desde a década de 1960, sobre Karl Marx e o marxismo
De acordo com o jornal britânico "The Guardian", ele tem um livro em revisão a ser publicado em 2013.
(O intelectual cedeu entrevista à TV Globo no fim da década de 1990 no programa Milênio. Assistaao lado)
O historiador britânico Eric Hobsbawm posa durante a primeira edição da Flip, em 2003; ele foi considerado a estrela daquela edição (Foto: Divulgação)G1
Com o aniversário de 50 anos de James Bond no cinema se aproximando - "007 contra o satânico Dr. No" estreou em 5 de outubro de 1962 -, começa nesta segunda-feira (1º) uma série de sete matérias especiais feitas peloG1sobre o universo de 007, o agente secreto do serviço de inteligência britânica. No primeiro capítulo, é a vez dos seis atores que intepretaram o espião do MI6, com peculiaridades de seus trabalhos.
Entre os seis atores que viveram oficialmente Bond ao longo dos 22 filmes da saga, dois deles não são da Grã-Bretanha: o australiano George Lazenby, o segundo 007, e o irlandês Pierce Brosnan. Os outros quatro têm a mesma origem britânica do personagem: Sean Connery é escocês, Roger Moore eDaniel Craig são ingleses e Timothy Dalton é galês.
Foi Sean Connery quem interpretou Bond pela primeira vez, em "007 contra o satânico Dr. No" (1962). Ao todo, ele esteve oficialmente na pele do agente em seis ocasiões, cinco delas nos anos 60. Depois, em 1971 (e após George Lazenby ser Bond uma única vez em "007 a serviço secreto de Sua Majestade"), ele voltou a viver o agente em "007 - Os diamantes são eternos" (1971). Curiosamente, ele ainda interpretaria Bond uma última vez nos anos 80, na produção não-oficial "007 nunca mais outra vez", de 1983.
Roger Moore assumiu o personagem britânico em 1973 em "Com 007 viva e deixe morrer". O inglês foi quem interpretou o agente secreto por mais vezes: sete ao longo de 12 anos. Quem veio em seguida foi Timothy Dalton, que atuou em dois filmes sobre James Bond: "007 marcado para a morte" (1987) e "007 - Permissão para matar" (1989).
O espião foi ganhar um novo filme apenas seis anos mais tarde, já nos anos 90. Dessa vez, Pierce Brosnan foi o escolhido para viver Bond, em "007 contra GoldenEye" (1995). Ele ainda foi o personagem em "007 - O amanhã nunca morre" (1997), "007 - O mundo não é o bastante" (1999) e "007 - Um novo dia para morrer" (2002).
O James Bond mais recente - e com contrato ainda em vigor - é o ator Daniel Craig. O inglês, de semblante fechado e traços mais "sérios" que os demais nomes que viveram o agente, está em três longas do personagem: "007 - Casino Royale" (2006), "007 - Quantum of Solace" (2008) e no ainda inédito "007 - Operação Skyfall", que estreia em outubro.
O Supremo Tribunal Federal (STF) vai começar a julgar os réus acusados de comprar o apoio político de parlamentares no Congresso nesta semana. Entre os acusados está o ex-ministro José Dirceu. A Corte vai concluir nesta segunda-feira (1º) a análise da conduta dos réus ligados ao PP, PTB, PMDB e PL (atual PR). Na quarta-feira (3), o ministro relator, Joaquim Barbosa , deve começar a apontar quem considera culpado pela compra dos votos.
O julgamento completa dois meses nesta segunda-feira, com a realização da 30.ª sessão. O ministro Dias Toffoli vai concluir seu voto sobre os beneficiários do valerioduto e, na sequência, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e o presidente da Corte, Carlos Ayres Britto, vão se pronunciar. A definição sobre o tema deve tomar toda a sessão.
A próxima questão a ser respondida pelos magistrados é quem foram os responsáveis pela compra de apoio político. Além de José Dirceu, são acusados de corrupção ativa o ex-presidente do PT José Genoino, o ex-tesoureiro Delúbio Soares, o ex-ministro dos Transportes Anderson Adauto (PMDB), o publicitário Marcos Valério e seus ex-sócios, Ramon Hollerbach e Cristiano Paz, o ex-advogado das agências, Rogério Tolentino, e as funcionárias da SMPB Simone Vasconcellos e Geiza Dias.
Barbosa vai construir seu voto destacando a ascendência de Dirceu sobre o grupo. Vai demonstrar o papel do ex-ministro na montagem da base de apoio ao governo Lula e sua posição de superioridade em relação aos dirigentes petistas. O relator vai sustentar que Dirceu e o núcleo político se associaram a Valério e ao Rural para usar na compra de apoio o mecanismo de distribuição de dinheiro já implementado escândalo relativo à campanha à reeleição de Eduardo Azeredo (PSDB) ao governo de Minas em 1998, que ficou conhecido como "mensalão mineiro".
"Perdão, mas não posso sofrer com o tango. Eu desfruto o tango."
Foi assim, no Salão Canning, tradicional casa de milongas em Buenos Aires, que levei o primeiro fora de um cavalheiro em minha vida de dançarina de fim de semana. Mereci. Salto alto e honestidade – “escucha, no sé bailar el tango, soy brasileña” – não são suficientes para sair ilesa de uma milonga com bailarinos exímios vestidos de negro. É preciso aprender antes de tanguear. Da mesma forma, fora dos salões, nas “calles” pichadas e sujas, é preciso tempo e estudo para entender a cabeça de “los hermanos”. Nós, brasileiros, vemos filmes argentinos, comemos bife de chorizo, tomamos vinho de Mendoza, compramos roupas de couro, degustamos as empanadas, o futebol e a literatura, ensaiamos o portunhol... mas não fazemos ideia do que é a Argentina, com sua combinação de paixão, decadência e nostalgia. Um país até hoje refém do peronismo, em todas as facetas, à esquerda e à direita, como num volteio de pernas ao som de Gardel. “Mi Buenos Aires querido” virou um “kilombo”, uma bagunça, na gíria portenha. Uma cidade degradada, dividida e ferida, com 13 milhões de habitantes, ou 40% da população do país, muitos deles ansiosos para emigrar, nem que seja para o Brasil.
A Argentina enfrenta uma crise. De personalidade e perspectiva. A inflação real é altíssima, a maior da América do Sul. Está, segundo economistas independentes, acima de 25% ao ano, embora o governo só admita 8%. O dólar sofre um cerco: os argentinos só podem comprar no câmbio oficial se viajarem para o exterior, com passagem na mão – e nunca com notas de pesos, apenas com cheque e transação bancária. O setor imobiliário parou: os apartamentos no mercado, todos dolarizados, não são vendidos nem comprados. Uma tristeza para um povo cujo principal investimento sempre foi o “ladrillo”, ou tijolo, metáfora para imóveis. A insegurança urbana aumentou drasticamente. Num período de 36 dias encerrado em julho, houve em Buenos Aires 18 assassinatos por roubo, uma morte a cada dois dias. No ano passado, a média era de uma a cada cinco dias. Já se mata até para roubar celular.
No mês passado, a Argentina foi ultrapassada pela Colômbia em tamanho do PIB. Deixou de ser a segunda economia da América do Sul, atrás do Brasil. No ranking de investimentos estrangeiros, está ainda mais atrás. Perde para Brasil, Chile, Peru e Colômbia. O tango político e econômico de Cristina, com passos para trás e para o lado, torna a Argentina uma parceira imprevisível. Poucos investidores se arriscam num mercado sujeito a intempéries como a reestatização da companhia petrolífera YPF ou as barreiras protecionistas, que renderam, em março passado, uma queixa por escrito de 40 países à Organização Mundial do Comércio (OMC).
Os argentinos vivem uma relação de amor e ódio com sua presidente, Cristina Elisabeth Fernández Wilhelm de Kirchner, mais conhecida como Cristina K – e chamada por todos de “la presidenta”. Ela diz ter “orgulho do nome de rainha”. Mas é acusada pelos opositores de transformar seu governo numa “democradura”. Cristina toma medidas radicais e arbitrárias na economia, briga com todos – especialmente com ex-aliados –, sufoca a oposição e a mídia, não forma um sucessor e é vista por muitos como a primeira caudilha do continente. Discursa como mãe de todos os “argentinos y argentinas” e baila a passos largos, ainda inconfessados, para mudar a Constituição e tentar o terceiro mandato em 2015. É uma dança que lhe vale comparações com o venezuelano Hugo Chávez.
Acuada por panelaços e greves, “la presidenta” reage à recente queda de popularidade com seu estilo personalista, que associa apelos sentimentais a ataques contra qualquer um que a critique. No poder desde 2007, ela criou um movimento forte, o “cristinismo” – especialmente desde a morte, em 2010, do marido, Néstor, que governou o país de 2003 a 2007. Detentos são levados de presídios para engrossar a claque de manifestações pró-governo. A imprensa oficial começa a chamá-la de Cristina Fernández, em vez de Kirchner, na tentativa de reafirmar sua independência do marido morto e de reescrever seu papel na história. Cristina também apela para o nacionalismo exacerbado para resgatar o amor do povo e unir o país. Tanto em pronunciamento na TV quanto nas ruas, ressuscita um fantasma: a reivindicação da soberania pelas Ilhas Malvinas, a “defesa da pátria contra os inimigos estrangeiros”, o mesmo recurso usado em 1982, pelo ditador Leopoldo Galtieri.
Teatral, ela se apoia no mito populista de Eva Perón, segunda mulher do caudilho Juan Perón, a “santa dos descamisados”, morta precocemente de um câncer de útero em 1952. Em julho passado, nos 60 anos da morte de Evita, Cristina criou a nota de 100 pesos com o rosto dela. “A Eva com que me identifico é a do punho cerrado em frente ao microfone”, disse Cristina. “Não com a Eva milagrosa. É a Eva dos silêncios, da longa noite da ditadura militar (1976-1983).” Na fachada do Ministério do Desenvolvimento Social, dois murais gigantescos de Evita, encomendados a artistas e escultores, dominam a Avenida 9 de Julho, a mais larga de Buenos Aires. Por meio do culto ao maior ícone do populismo argentino, Cristina fortalece sua própria imagem – embora, exceto por serem ambas peronistas, haja pouquíssimas semelhanças entre as duas mulheres. Enquanto Evita não dava a mínima para grifes, um dos exemplares da “Cristinita”, bonequinha de pano de Cristina K, esgotada nos museus do governo, carrega sua bolsa Vuitton. Cristina distribui subsídios para os pobres e para os jovens nacionalistas sem abandonar seu Rolex de ouro.
“Cristina é uma atriz”, diz o escritor e ensaísta Marcos Aguinis. “Ela está falando, quase chorando, diante de uma multidão e, de repente, muda o semblante e grita para um homem que a filmava: ‘Abaixe a câmera! Quem está atrás não me vê’.” Na verdade, ela nunca foi atriz – ao contrário de Evita, que atuou no cinema –, mas se comporta como se fosse. Tudo em Cristina é estudado e exagerado. Ela se veste sempre de preto, com colar de pérolas, para reforçar a imagem da viúva. “La presidenta” é tão caricatural que parece uma imitação de si mesma: a máscara de delineador e cílios, os anéis vistosos, as unhas compridas, os cabelos cortados em camadas, com uma franja comprida e rebelde, que ela joga para trás, a boca realçada por lápis, batom e Botox. Cristina explora a imagem da bandeira celeste, azul e branca, e faz gestos com as mãos espalmadas, dá adeusinho ou pousa a mão direita sobre o coração para depois fazer o V de vitória, com o braço esticado à frente. “Che! Por favor, por favor! Menos barulho com o bumbo!”, grita em comício. Repete as frases, como se produzisse um eco, e entremeia com pausas calculadas.
Ela não dá entrevista. Aciona as “cadenas” – a cadeia nacional de televisão e rádio – para monologar sobre tudo, das Malvinas à reestatização da YPF, passando por ataques pessoais a opositores. Faz discursos prolixos de quase uma hora de duração. Foram 51 “cadenas” nos últimos três anos. Neste ano, ela já fez 16, a última no dia 3 de setembro, interrompendo programas de grande audiência na TV local e provocando panelaços de protesto em bairros portenhos como Recoleta, Bairro Norte, Palermo e Belgrano. No Facebook, existe até um grupo chamado Odeio as cadenas de Cristina. Ela não usa a TV apenas para fazer propaganda. Cristina quer desqualificar a mídia e dar nome e sobrenome de jornalistas, empresários, sindicalistas ou políticos não alinhados com ela – uma de suas semelhanças com o venezuelano Chávez. Um dos episódios mais graves do ano ocorreu em julho. Cristina usou a rede nacional para exibir a foto do dono de uma imobiliária que fora entrevistado pelo Clarín – jornal com que trava uma guerra declarada desde 2008. O entrevistado simplesmente dissera uma verdade: lamentava que o mercado imobiliário estivesse parado devido às restrições na compra e venda de dólares. Bastou para Cristina declarar que, a seu pedido, a Receita (Afip) investigaria se ele pagava todos os impostos. Como reagiriam os brasileiros se Dilma Rousseff fizesse algo remotamente parecido?
“Cristina é hoje uma figura de televisão, muito mais que uma estadista”, afirma a senadora independente por Córdoba Norma Morandini, autora do recém-lançado livro Da culpa ao perdão. Os dois irmãos de Norma, por coincidência chamados Néstor e Cristina, foram sequestrados e desapareceram na ditadura militar. Norma se diz angustiada com “a cultura de recalque, medo e desconfiança” no país. “Cristina pede diálogo, mas não dialoga com ninguém. Ela encarna um modelo antidemocrático e quer transformar o governo num regime. Temos uma juventude que foi criada na paz, mas Cristina estimula o ódio e a patrulha ideológica.”
O governo criou um poderoso aparato de propaganda, com jornais oficiais e televisões estatais, com raio de influência bem mais modesto do que a imprensa profissional. Cristina não chega ao extremo de Chávez. Até agora, não fechou televisões nem ocupou jornais. Mas usa armas como a publicidade oficial ou o papel de imprensa para tentar asfixiar quem a critica. Sua campanha de desqualificação dos diários mais influentes e mais vendidos, Clarín e La Nación, não combina com o cargo de presidente. Uma das bandeiras de Cristina – impressa em cartazes e até em pares de meias ou embalagens de alfajores – é “Clarín miente”. Um colunista do La Nación, Carlos Pagni, foi chamado de “nazista” por ela, por ter escrito um artigo que mencionava um avô judeu de Cristina. No mês passado, ela propôs na TV uma Lei de Ética Pública e disse querer saber quais são as “fontes de pagamento” de todos os jornalistas.
“O governo tem uma posição filosófica contra a imprensa”, diz o jornalista Jorge Lanata, uma celebridade no país, fundador do jornal Página 12 (hoje pró-governo) e uma espécie de Michael Moore portenho, com seus programas na TV e na internet recheados de sátiras. É imperdível uma paródia dominical que a comediante Fátima Florez faz de Cristina no programa de televisão de Lanata. “Um dos teóricos de Cristina é o filósofo pós-marxista Ernesto Laclau, peronista que vive na Inglaterra”, afirma Lanata. “Laclau diz textualmente que a imprensa é um agente de distorção social. E Cristina crê nisso. Todos esses do autoproclamado socialismo século XXI, Chávez, Kirchner e (Rafael) Correa (presidente do Equador), nos veem como inimigos. Desde os anos 1950, com o peronismo, não há nada parecido. Perón controlou a emissão de papel para os jornais. E comprou um montão de rádios com empresários amigos. Desgraçadamente, minha impressão é que, depois de Cristina, veremos um governo mais à direita. Será muito difícil reconstruir o discurso de esquerda na Argentina, porque Cristina o destroçou.” Com seu programa televisivo, Periodismo para todos – que ironiza o slogan “Governo para todos”, de Cristina –, Lanata tem sofrido com a censura em províncias onde os governadores cristinistas cortam seu sinal.
Para entender o mito Cristina, é preciso recuar na história. Ela era uma linda jovem de 21 anos quando conheceu Néstor, na Faculdade de Direito. Casaram-se seis meses depois. O jovem casal de peronistas moderados começou a fazer dinheiro ao montar uma pequena banca de advocacia em Rio Gallegos, capital de Santa Cruz, província produtora de petróleo na Patagônia. A especialidade dos dois eram as hipotecas. Entraram na política. Ela foi deputada, depois senadora. Néstor, depois de eleito governador de Santa Cruz por três vezes, tornou-se presidente em 2003 quase por acaso. Tirou proveito do caos institucional e econômico deixado pelo presidente Carlos Menem, um peronista de direita. Entre Menem e Néstor, a Argentina teve cinco presidentes em quatro anos. Um kilombo. Néstor foi eleito com apenas 22% dos votos.
O casal K foi beneficiado pelos altos preços da soja no mercado internacional. A economia cresceu com a exportação de produtos agropecuários. O desemprego caiu de 17,8% para 7,7% em 2007. As tarifas de energia e transporte foram mantidas, beneficiando os mais carentes. Os Kirchners criaram vários programas assistencialistas contra a pobreza. Julgaram crimes cometidos pela ditadura. Objetos considerados cafonas, como os bonecos de pinguins, passaram a ser cult com a ascensão desse político de nariz adunco, vindo da Patagônia, cujo apelido era “el pingüino”. Bares moderninhos servem vinho em jarros de pinguim.
Agora, a situação mudou. O dólar, paixão nacional desde os tempos incertos de Menem, sofreu um canetaço de Cristina no fim do ano passado. Ela decidiu arrochar o mercado cambial quando percebeu que os argentinos haviam sacado em curto espaço de tempo US$ 3 bilhões, enviando a maior parte ao exterior. Numa tentativa de preservar a reserva do Banco Central, restringiu a venda de dólar, euro e real. O câmbio paralelo funciona à luz do dia e no ritmo febril do bandoneón. Na Calle Florida, no centro da capital, ouve-se uma cantilena a cada esquina dos “arbolitos”, ou doleiros: “Dólar-real-euro, dólar-real-euro, dólar-real-euro”. O dólar “blue” (paralelo) é negociado nas ruas a 6,8 pesos. O oficial é mantido a 4,5 pesos. A transação ilegal é concluída em ruas transversais.
Vou comprar um vestido no bairro de Palermo. Digo que só tenho dólares, pergunto quanto custa, e a vendedora responde: “Mas é dólar de Cristina?”. O dólar no comércio é negociado num meio-termo entre o oficial e o paralelo. Na semana passada, o governo anunciou que taxará em 15% toda compra no exterior com cartão de crédito, ao perceber que esse era o jeitinho adotado pela classe média para manter o consumo em terras estrangeiras. Apenas entre fevereiro e março de 2012, os argentinos gastaram US$ 304 milhões com cartão de crédito no exterior – em 2011, foram US$ 160 milhões. “Preferimos que os argentinos passem o verão no país”, disse Ricardo Etchegaray, o chefe da Afip. Também serão taxadas as compras pela internet. “Se a questão para o governo era reter dólares no país, por que bloquear meus reais no Brasil?”, diz José Fernandez, de 75 anos, argentino residente no Brasil desde 2003 cujo cartão de aposentado foi bloqueado. “Terei de ir para a Argentina e ir comprando os reais à medida que a Afip permita e voltar ao Brasil quando tiver o suficiente para pelo menos dois meses. Essa medida equivale a não permitir sair do país, ao melhor estilo ditatorial.”
De incerteza em incerteza, os argentinos não acreditam mais em sua moeda faz tempo. Receiam que suas economias sejam confiscadas ou virem poeira com uma hiperinflação. Profissionais liberais, taxistas e até mesmo operários e empregadas domésticas se acostumaram há décadas a guardar seus punhados de dólares. Muitos tentam comprar apartamentos e casas no Uruguai. Quem não viaja retira dólar dos bancos e guarda em casa. Temem ser “assaltados” pela Casa Rosada, mais do que por bandidos comuns. Os índices oficiais de inflação divulgados pelo Indec, o instituto oficial, estão muito abaixo da inflação percebida no dia a dia. O governo proibiu a divulgação de índices calculados pelo setor privado. Para saber a quantas anda o Índice de Preços ao Consumidor (IPC), os argentinos consultam sites como www.inflacionverdadera.com.
A crise aumenta a desconfiança sobre os propósitos de Cristina. Qual seria o compromisso de uma presidente milionária com os pobres? A família Kirchner tem 22 propriedades, entre elas hotéis de alto luxo, decorados, segundo denúncias, com a ajuda do avião presidencial Tango 1. Desde que Néstor assumiu o poder em 2003, a fortuna declarada dos Kirchners foi multiplicada por nove, em dólar: de US$ 1,9 milhão, para US$ 17 milhões. Cristina comprou dois dos mais luxuosos apartamentos do Madero Center, um prédio no bairro revitalizado de Puerto Madero, onde ficavam as antigas docas. Cada dúplex, cotado a US$ 2,5 milhões, tem 400 metros quadrados, quatro suítes. Ficam a três quadras do palácio presidencial e estão em nome de uma empresa dos Kirchners.
Ao ser eleita, em 2007, e reeleita em 2011, Cristina jurou “por Deus e pela Pátria fazer observar fielmente a Constituição”. Poucos duvidam que ela, mais arrogante e menos hábil politicamente que Néstor, tente reformar a Carta para se perpetuar no poder. Além de não existir, na Argentina, uma oposição consistente como na Venezuela, Cristina não formou sucessor em sua tropa. Aliados tornam-se adversários se não dizem amém à presidente. Ela brigou publicamente com o governador de Buenos Aires, Daniel Scioli, vice-presidente no governo de Néstor de 2003 a 2007. Scioli foi incluído em sua lista de traidores por ter cometido uma indiscrição: disse que se candidataria a presidente em 2015, caso Cristina não tivesse o desejo de disputar o terceiro mandato. O líder caminhoneiro Hugo Moyano, reeleito líder da Central Geral dos Trabalhadores (CGT), foi declarado “inimigo do povo” por criticar a manipulação da inflação. Os outros líderes sindicais, reunidos por Cristina na Casa Rosada, podem criar em outubro uma CGT paralela.
Para que Cristina possa disputar o terceiro mandato, são necessários dois terços dos votos da Câmara e do Senado para convocar uma Constituinte. A maioria dos argentinos rejeita uma nova reeleição, por ser antidemocrática. Analistas reconhecem, porém, que o futuro próximo tende a continuar peronista, mesmo que Cristina não seja reeleita. “O mais lastimável em nosso país é a política, muito velha”, afirma a senadora Norma Morandini. “Esses peronistas de agora invocam os direitos humanos para fazer política. O Brasil é muito mais moderno democraticamente do que nós. Quem fala ainda de Getúlio Vargas? Nosso país denunciou violações de direitos humanos, mas não construiu uma política de direitos humanos. O Brasil, que não fez nada disso, tem uma presidente guerrilheira. Aqui, nós temos uma presidente do partido que justificou o golpe.”
Em sua campanha na busca do terceiro mandato, Cristina decidiu aproximar-se dos militares e, pela primeira vez, aumentou seus soldos em julho. Como uma de suas bases de apoio é a juventude kirchnerista, o Senado argentino começou, no dia 4 de setembro, a debater a redução da idade de voto para 16 anos. Trata-se de uma nova ofensiva para tentar obter uma vitória incontestável nas eleições legislativas de 2013 e, com o controle da Câmara e do Senado, abrir o caminho para mudar a Constituição. Isso significaria a inclusão de 700 mil jovens eleitores, entre 16 e 18 anos, mais sensíveis ao discurso do “tudo pelo social”. O grupo político chamado La Cámpora é liderado pelo filho da presidente, Máximo Kirchner, e comanda ações de doutrinação em escolas e universidades, distribuindo livros com frases de Néstor e Cristina.
Há uma profunda divisão na Argentina. E muito ressentimento. Estive numa ceia familiar em que a avó, de 90 anos, era contra Cristina e abominava o peronismo: “Já vi tudo isso, tantas vezes”. A mãe apoiava a presidente, mas admitia alguns equívocos do governo. E os dois filhos, entre 20 e 30 anos, eram cristinistas apaixonados. Se dependesse deles, ela se perpetuaria no poder, “porque incomoda a elite burguesa”. A família, que se reúne toda terça-feira à noite, decidiu que não se fala mais de política à mesa, porque acaba em briga. “No governo Menem, a vida era mais fácil, éramos todos contra ele”, diz o filho mais velho. “Agora, perdemos amigos, porque estão em lados opostos.” Não há meio-termo com Cristina. Ou você ama ou você odeia.
O escritor e sociólogo argentino Martín Sivak publicou recentemente um artigo no jornal The New York Times em que descreve como está longe de ser cumprida a profecia de Néstor. Ao assumir a Presidência, em 2003, ele prometeu que, no futuro, os argentinos poderiam viver “num país normal”. Eis um trecho do relato de Sivak sobre a realidade atual: “Quando voltei a Buenos Aires, depois de cinco anos fora do país, as forças pró ou anti-Kirchner tinham causado atritos em relações familiares e reorganizado a lista de convidados para o churrasco. Um de meus vizinhos pôs um adesivo junto a sua porta que dizia: ‘Se você é ‘K’, não toque esta campainha’. A quatro quadras de minha casa, abriu o primeiro bar com tema peronista-kirchnerista, que zomba dos líderes da oposição no cardápio”.
Em “Mi Buenos Aires querido”, cidade que nos encanta por suas livrarias antigas, arquitetura art nouveau e neoclássica e restaurantes divinos onde a carne, de tão macia, se parte com a colher, fica a impressão de um tango atravessado na garganta. Com sujeira nas ruas e no metrô, transporte público ineficiente, ampliação do emprego paralelo para 40% dos trabalhadores, índices de pobreza conflitantes (8,8% segundo o governo e 27,3% segundo a Igreja Católica), denúncias persistentes de corrupção em todos os níveis de governo e medo da volta do fascismo, nossos hermanos argentinos sofrem hoje bem mais do que desfrutam.
Embora quase nunca tivesse assistido ao seu programa,
isso não me impediu de admirar essa mulher que sempre fez parte da história da
televisão brasileira, entretendo o público, um público fiel e apaixonado.
Hebe Camargo era mais que uma apresentadora de
televisão, ela esbanjava alegria e irreverência, muitas vezes chegando ao ponto
de cair no ridículo, o que definitivamente não retirava o seu brilho.
O fato é que, como toda mortal, Hebe Camargo encerrou
a sua existência material nesse plano - uma maneira sutil de dizer a morte sem
adentrar na seara das religiões -. E como era de se esperar, o clamor foi
grande, a comoção foi enorme. Sua morte teve a repercussão esperada para uma
mulher midiática e querida.
No entanto, das manifestações de carinho e respeito recebidas
por Hebe Camargo, a que mais me chamou a atenção foi o beijo de despedida do
apresentador Silvio Santos, dando-lhe o "selinho", sua marca
registrada.
O "selinho" de Silvio Santos decerto não
teve o condão de despertá-la, a exemplo do príncipe encantado na história da
Branca de Neve, mas teve um simbolismo marcante: gratidão, carinho, amor sincero,
reverência, respeito... sentimentos nobres hoje tão em desuso.
Fico pensando nas pessoas - mesmo as mais amadas - a
quem teria a "coragem" de curvar-me no caixão e beijá-la de tal modo,
cruzando a barreira da vida e da morte, do transitório para o eterno, do humano
para o divino.
A morte, um fenômeno que sempre causou curiosidade no
homem, desde os primórdios, levou-o a especular sobre a vida e sobre o que
viria depois. Um mistério que ainda hoje assusta e fascina.
Nas palavras de Fustel de Coulanges, no clássico
Cidade Antiga, "foi talvez diante da morte que o homem, pela primeira vez,
teve a ideia do sobrenatural e quis abarcar mais do que seus olhos humanos
podiam lhe mostrar. A morte foi pois seu primeiro mistério, colocando-o no
caminho de outros mistérios. Elevou seu pensamento do visível para o invisível,
do transitório para o eterno, do humano para o divino."
A morte é a coisa mais certa de nossa existência, mas
"ninguém quer a morte, só saúde e sorte".