segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Cristina Kirchner empobrece o país, mas se agarra ao poder


"Perdão, mas não posso sofrer com o tango. Eu desfruto o tango."
Foi assim, no Salão Canning, tradicional casa de milongas em Buenos Aires, que levei o primeiro fora de um cavalheiro em minha vida de dançarina de fim de semana. Mereci. Salto alto e honestidade – “escucha, no sé bailar el tango, soy brasileña” – não são suficientes para sair ilesa de uma milonga com bailarinos exímios vestidos de negro. É preciso aprender antes de tanguear. Da mesma forma, fora dos salões, nas “calles” pichadas e sujas, é preciso tempo e estudo para entender a cabeça de “los hermanos”. Nós, brasileiros, vemos filmes argentinos, comemos bife de chorizo, tomamos vinho de Mendoza, compramos roupas de couro, degustamos as empanadas, o futebol e a literatura, ensaiamos o portunhol... mas não fazemos ideia do que é a Argentina, com sua combinação de paixão, decadência e nostalgia. Um país até hoje refém do peronismo, em todas as facetas, à esquerda e à direita, como num volteio de pernas ao som de Gardel. “Mi Buenos Aires querido” virou um “kilombo”, uma bagunça, na gíria portenha. Uma cidade degradada, dividida e ferida, com 13 milhões de habitantes, ou 40% da população do país, muitos deles ansiosos para emigrar, nem que seja para o Brasil.
Cristina  (Foto: AFP)
A Argentina enfrenta uma crise. De personalidade e perspectiva. A inflação real é altíssima, a maior da América do Sul. Está, segundo economistas independentes, acima de 25% ao ano, embora o governo só admita 8%. O dólar sofre um cerco: os argentinos só podem comprar no câmbio oficial se viajarem para o exterior, com passagem na mão – e nunca com notas de pesos, apenas com cheque e transação bancária. O setor imobiliário parou: os apartamentos no mercado, todos dolarizados, não são vendidos nem comprados. Uma tristeza para um povo cujo principal investimento sempre foi o “ladrillo”, ou tijolo, metáfora para imóveis. A insegurança urbana aumentou drasticamente. Num período de 36 dias encerrado em julho, houve em Buenos Aires 18 assassinatos por roubo, uma morte a cada dois dias. No ano passado, a média era de uma a cada cinco dias. Já se mata até para roubar celular.
CRISTINA APROVA... ...a boneca de pano  “Cristinita”, feita  à sua imagem. Um dos exemplares, esgotados nos museus do governo, carrega uma bolsa Vuitton  (Foto:  Lali Baliner/Papeles y sellos/EFE)
No mês passado, a Argentina foi ultrapassada pela Colômbia em tamanho do PIB. Deixou de ser a segunda economia da América do Sul, atrás do Brasil. No ranking de investimentos estrangeiros, está ainda mais atrás. Perde para Brasil, Chile, Peru e Colômbia. O tango político e econômico de Cristina, com passos para trás e para o lado, torna a Argentina uma parceira imprevisível. Poucos investidores se arriscam num mercado sujeito a intempéries como a reestatização da companhia petrolífera YPF ou as barreiras protecionistas, que renderam, em março passado, uma queixa por escrito de 40 países à Organização Mundial do Comércio (OMC).
Os argentinos vivem uma relação de amor e ódio com sua presidente, Cristina Elisabeth Fernández Wilhelm de Kirchner, mais conhecida como Cristina K – e chamada por todos de “la presidenta”. Ela diz ter “orgulho do nome de rainha”. Mas é acusada pelos opositores de transformar seu governo numa “democradura”. Cristina toma medidas radicais e arbitrárias na economia, briga com todos – especialmente com ex-aliados –, sufoca a oposição e a mídia, não forma um sucessor e é vista por muitos como a primeira caudilha do continente. Discursa como mãe de todos os “argentinos y argentinas” e baila a passos largos, ainda inconfessados, para mudar a Constituição e tentar o terceiro mandato em 2015. É uma dança que lhe vale comparações com o venezuelano Hugo Chávez.
CRISTINA REPROVA... ...a imperdível paródia dominical feita pela comediante Fátima Florez no programa  de televisão do jornalista Jorge Lanata  (Foto: Revista Notícias/Perfil)
Acuada por panelaços e greves, “la presidenta” reage à recente queda de popularidade com seu estilo personalista, que associa apelos sentimentais a ataques contra qualquer um que a critique. No poder desde 2007, ela criou um movimento forte, o “cristinismo” – especialmente desde a morte, em 2010, do marido, Néstor, que governou o país de 2003 a 2007. Detentos são levados de presídios para engrossar a claque de manifestações pró-governo. A imprensa oficial começa a chamá-la de Cristina Fernández, em vez de Kirchner, na tentativa de reafirmar sua independência do marido morto e de reescrever seu papel na história. Cristina também apela para o nacionalismo exacerbado para resgatar o amor do povo e unir o país. Tanto em pronunciamento na TV quanto nas ruas, ressuscita um fantasma: a reivindicação da soberania pelas Ilhas Malvinas, a “defesa da pátria contra os inimigos estrangeiros”, o mesmo recurso usado em 1982, pelo ditador Leopoldo Galtieri.
Teatral, ela se apoia no mito populista de Eva Perón, segunda mulher do caudilho Juan Perón, a “santa dos descamisados”, morta precocemente de um câncer de útero em 1952. Em julho passado, nos 60 anos da morte de Evita, Cristina criou a nota de 100 pesos com o rosto dela. “A Eva com que me identifico é a do punho cerrado em frente ao microfone”, disse Cristina. “Não com a Eva milagrosa. É a Eva dos silêncios, da longa noite da ditadura militar (1976-1983).” Na fachada do Ministério do Desenvolvimento Social, dois murais gigantescos de Evita, encomendados a artistas e escultores, dominam a Avenida 9 de Julho, a mais larga de Buenos Aires. Por meio do culto ao maior ícone do populismo argentino, Cristina fortalece sua própria imagem – embora, exceto por serem ambas peronistas, haja pouquíssimas semelhanças entre as duas mulheres. Enquanto Evita não dava a mínima para grifes, um dos exemplares da “Cristinita”, bonequinha de pano de Cristina K, esgotada nos museus do governo, carrega sua bolsa Vuitton. Cristina distribui subsídios para os pobres e para os jovens nacionalistas sem abandonar seu Rolex de ouro.
JOVENS APROVAM... Num protesto diante  da embaixada britânica no início do ano, manifestantes apoiam  a reivindicação  de soberania sobre  as Ilhas Malvinas, ressuscitada por Cristina  (Foto: Sergio Goya/AFP)
“Cristina é uma atriz”, diz o escritor e ensaísta Marcos Aguinis. “Ela está falando, quase chorando, diante de uma multidão e, de repente, muda o semblante e grita para um homem que a filmava: ‘Abaixe a câmera! Quem está atrás não me vê’.” Na verdade, ela nunca foi atriz – ao contrário de Evita, que atuou no cinema –, mas se comporta como se fosse. Tudo em Cristina é estudado e exagerado. Ela se veste sempre de preto, com colar de pérolas, para reforçar a imagem da viúva. “La presidenta” é tão caricatural que parece uma imitação de si mesma: a máscara de delineador e cílios, os anéis vistosos, as unhas compridas, os cabelos cortados em camadas, com uma franja comprida e rebelde, que ela joga para trás, a boca realçada por lápis, batom e Botox. Cristina explora a imagem da bandeira celeste, azul e branca, e faz gestos com as mãos espalmadas, dá adeusinho ou pousa a mão direita sobre o coração para depois fazer o V de vitória, com o braço esticado à frente. “Che! Por favor, por favor! Menos barulho com o bumbo!”, grita em comício. Repete as frases, como se produzisse um eco, e entremeia com pausas calculadas.
...SINDICATOS REPROVAM Uma idosa participa de  um panelaço em repúdio aos altos impostos em junho.  Lideranças sindicais deixaram de apoiar  Cristina e promoveram manifestações nas ruas  (Foto: Martin Acosta/Reuters)
Ela não dá entrevista. Aciona as “cadenas” – a cadeia nacional de televisão e rádio – para monologar sobre tudo, das Malvinas à reestatização da YPF, passando por ataques pessoais a opositores. Faz discursos prolixos de quase uma hora de duração. Foram 51 “cadenas” nos últimos três anos. Neste ano, ela já fez 16, a última no dia 3 de setembro, interrompendo programas de grande audiência na TV local e provocando panelaços de protesto em bairros portenhos como Recoleta, Bairro Norte, Palermo e Belgrano. No Facebook, existe até um grupo chamado Odeio as cadenas de Cristina. Ela não usa a TV apenas para fazer propaganda. Cristina quer desqualificar a mídia e dar nome e sobrenome de jornalistas, empresários, sindicalistas ou políticos não alinhados com ela – uma de suas semelhanças com o venezuelano Chávez. Um dos episódios mais graves do ano ocorreu em julho. Cristina usou a rede nacional para exibir a foto do dono de uma imobiliária que fora entrevistado pelo Clarín – jornal com que trava uma guerra declarada desde 2008. O entrevistado simplesmente dissera uma verdade: lamentava que o mercado imobiliário estivesse parado devido às restrições na compra e venda de dólares. Bastou para Cristina declarar que, a seu pedido, a Receita (Afip) investigaria se ele pagava todos os impostos. Como reagiriam os brasileiros se Dilma Rousseff fizesse algo remotamente parecido?
“Cristina é hoje uma figura de televisão, muito mais que uma estadista”, afirma a senadora independente por Córdoba Norma Morandini, autora do recém-lançado livro Da culpa ao perdão. Os dois irmãos de Norma, por coincidência chamados Néstor e Cristina, foram sequestrados e desapareceram na ditadura militar. Norma se diz angustiada com “a cultura de recalque, medo e desconfiança” no país. “Cristina pede diálogo, mas não dialoga com ninguém. Ela encarna um modelo antidemocrático e quer transformar o governo num regime. Temos uma juventude que foi criada na paz, mas Cristina estimula o ódio e a patrulha ideológica.”
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HIPOCRISIA O escritor argentino Marcos Aguinis  critica a hostilidade  de Cristina à imprensa profissional. “Ela  é uma atriz”, diz ele  (Foto: divulgação)
O governo criou um poderoso aparato de propaganda, com jornais oficiais e televisões estatais, com raio de influência bem mais modesto do que a imprensa profissional. Cristina não chega ao extremo de Chávez. Até agora, não fechou televisões nem ocupou jornais. Mas usa armas como a publicidade oficial ou o papel de imprensa para tentar asfixiar quem a critica. Sua campanha de desqualificação dos diários mais influentes e mais vendidos, Clarín e La Nación, não combina com o cargo de presidente. Uma das bandeiras de Cristina – impressa em cartazes e até em pares de meias ou embalagens de alfajores – é “Clarín miente”. Um colunista do La Nación, Carlos Pagni, foi chamado de “nazista” por ela, por ter escrito um artigo que mencionava um avô judeu de Cristina. No mês passado, ela propôs na TV uma Lei de Ética Pública e disse querer saber quais são as “fontes de pagamento” de todos os jornalistas.
“O governo tem uma posição filosófica contra a imprensa”, diz o jornalista Jorge Lanata, uma celebridade no país, fundador do jornal Página 12 (hoje pró-governo) e uma espécie de Michael Moore portenho, com seus programas na TV e na internet recheados de sátiras. É imperdível uma paródia dominical que a comediante Fátima Florez faz de Cristina no programa de televisão de Lanata. “Um dos teóricos de Cristina é o filósofo pós-marxista Ernesto Laclau, peronista que vive na Inglaterra”, afirma Lanata. “Laclau diz textualmente que a imprensa é um agente de distorção social. E Cristina crê nisso. Todos esses do autoproclamado socialismo século XXI, Chávez, Kirchner e (Rafael) Correa (presidente do Equador), nos veem como inimigos. Desde os anos 1950, com o peronismo, não há nada parecido. Perón controlou a emissão de papel para os jornais. E comprou um montão de rádios com empresários amigos. Desgraçadamente, minha impressão é que, depois de Cristina, veremos um governo mais à direita. Será muito difícil reconstruir o discurso de esquerda na Argentina, porque Cristina o destroçou.” Com seu programa televisivo, Periodismo para todos – que ironiza o slogan “Governo para todos”, de Cristina –, Lanata tem sofrido com a censura em províncias onde os governadores cristinistas cortam seu sinal.

Para entender o mito Cristina, é preciso recuar na história. Ela era uma linda jovem de 21 anos quando conheceu Néstor, na Faculdade de Direito. Casaram-se seis meses depois. O jovem casal de peronistas moderados começou a fazer dinheiro ao montar uma pequena banca de advocacia em Rio Gallegos, capital de Santa Cruz, província produtora de petróleo na Patagônia. A especialidade dos dois eram as hipotecas. Entraram na política. Ela foi deputada, depois senadora. Néstor, depois de eleito governador de Santa Cruz por três vezes, tornou-se presidente em 2003 quase por acaso. Tirou proveito do caos institucional e econômico deixado pelo presidente Carlos Menem, um peronista de direita. Entre Menem e Néstor, a Argentina teve cinco presidentes em quatro anos. Um kilombo. Néstor foi eleito com apenas 22% dos votos.

O casal K foi beneficiado pelos altos preços da soja no mercado internacional. A economia cresceu com a exportação de produtos agropecuários. O desemprego caiu de 17,8% para 7,7% em 2007. As tarifas de energia e transporte foram mantidas, beneficiando os mais carentes. Os Kirchners criaram vários programas assistencialistas contra a pobreza. Julgaram crimes cometidos pela ditadura. Objetos considerados cafonas, como os bonecos de pinguins, passaram a ser cult com a ascensão desse político de nariz adunco, vindo da Patagônia, cujo apelido era “el pingüino”. Bares moderninhos servem vinho em jarros de pinguim.

Agora, a situação mudou. O dólar, paixão nacional desde os tempos incertos de Menem, sofreu um canetaço de Cristina no fim do ano passado. Ela decidiu arrochar o mercado cambial quando percebeu que os argentinos haviam sacado em curto espaço de tempo US$ 3 bilhões, enviando a maior parte ao exterior. Numa tentativa de preservar a reserva do Banco Central, restringiu a venda de dólar, euro e real. O câmbio paralelo funciona à luz do dia e no ritmo febril do bandoneón. Na Calle Florida, no centro da capital, ouve-se uma cantilena a cada esquina dos “arbolitos”, ou doleiros: “Dólar-real-euro, dólar-real-euro, dólar-real-euro”. O dólar “blue” (paralelo) é negociado nas ruas a 6,8 pesos. O oficial é mantido a 4,5 pesos. A transação ilegal é concluída em ruas transversais.

Vou comprar um vestido no bairro de Palermo. Digo que só tenho dólares, pergunto quanto custa, e a vendedora responde: “Mas é dólar de Cristina?”. O dólar no comércio é negociado num meio-termo entre o oficial e o paralelo. Na semana passada, o governo anunciou que taxará em 15% toda compra no exterior com cartão de crédito, ao perceber que esse era o jeitinho adotado pela classe média para manter o consumo em terras estrangeiras. Apenas entre fevereiro e março de 2012, os argentinos gastaram US$ 304 milhões com cartão de crédito no exterior – em 2011, foram US$ 160 milhões. “Preferimos que os argentinos passem o verão no país”, disse Ricardo Etchegaray, o chefe da Afip. Também serão taxadas as compras pela internet. “Se a questão para o governo era reter dólares no país, por que bloquear meus reais no Brasil?”, diz José Fernandez, de 75 anos, argentino residente no Brasil desde 2003 cujo cartão de aposentado foi bloqueado. “Terei de ir para a Argentina e ir comprando os reais à medida que a Afip permita e voltar ao Brasil quando tiver o suficiente para pelo menos dois meses. Essa medida equivale a não permitir sair do país, ao melhor estilo ditatorial.”

De incerteza em incerteza, os argentinos não acreditam mais em sua moeda faz tempo. Receiam que suas economias sejam confiscadas ou virem poeira com uma hiperinflação. Profissionais liberais, taxistas e até mesmo operários e empregadas domésticas se acostumaram há décadas a guardar seus punhados de dólares. Muitos tentam comprar apartamentos e casas no Uruguai. Quem não viaja retira dólar dos bancos e guarda em casa. Temem ser “assaltados” pela Casa Rosada, mais do que por bandidos comuns. Os índices oficiais de inflação divulgados pelo Indec, o instituto oficial, estão muito abaixo da inflação percebida no dia a dia. O governo proibiu a divulgação de índices calculados pelo setor privado. Para saber a quantas anda o Índice de Preços ao Consumidor (IPC), os argentinos consultam sites como www.inflacionverdadera.com.

A crise aumenta a desconfiança sobre os propósitos de Cristina. Qual seria o compromisso de uma presidente milionária com os pobres? A família Kirchner tem 22 propriedades, entre elas hotéis de alto luxo, decorados, segundo denúncias, com a ajuda do avião presidencial Tango 1. Desde que Néstor assumiu o poder em 2003, a fortuna declarada dos Kirchners foi multiplicada por nove, em dólar: de US$ 1,9 milhão, para US$ 17 milhões. Cristina comprou dois dos mais luxuosos apartamentos do Madero Center, um prédio no bairro revitalizado de Puerto Madero, onde ficavam as antigas docas. Cada dúplex, cotado a US$ 2,5 milhões, tem 400 metros quadrados, quatro suítes. Ficam a três quadras do palácio presidencial e estão em nome de uma empresa dos Kirchners.

Ao ser eleita, em 2007, e reeleita em 2011, Cristina jurou “por Deus e pela Pátria fazer observar fielmente a Constituição”. Poucos duvidam que ela, mais arrogante e menos hábil politicamente que Néstor, tente reformar a Carta para se perpetuar no poder. Além de não existir, na Argentina, uma oposição consistente como na Venezuela, Cristina não formou sucessor em sua tropa. Aliados tornam-se adversários se não dizem amém à presidente. Ela brigou publicamente com o governador de Buenos Aires, Daniel Scioli, vice-presidente no governo de Néstor de 2003 a 2007. Scioli foi incluído em sua lista de traidores por ter cometido uma indiscrição: disse que se candidataria a presidente em 2015, caso Cristina não tivesse o desejo de disputar o terceiro mandato. O líder caminhoneiro Hugo Moyano, reeleito líder da Central Geral dos Trabalhadores (CGT), foi declarado “inimigo do povo” por criticar a manipulação da inflação. Os outros líderes sindicais, reunidos por Cristina na Casa Rosada, podem criar em outubro uma CGT paralela.

Para que Cristina possa disputar o terceiro mandato, são necessários dois terços dos votos da Câmara e do Senado para convocar uma Constituinte. A maioria dos argentinos rejeita uma nova reeleição, por ser antidemocrática. Analistas reconhecem, porém, que o futuro próximo tende a continuar peronista, mesmo que Cristina não seja reeleita. “O mais lastimável em nosso país é a política, muito velha”, afirma a senadora Norma Morandini. “Esses peronistas de agora invocam os direitos humanos para fazer política. O Brasil é muito mais moderno democraticamente do que nós. Quem fala ainda de Getúlio Vargas? Nosso país denunciou violações de direitos humanos, mas não construiu uma política de direitos humanos. O Brasil, que não fez nada disso, tem uma presidente guerrilheira. Aqui, nós temos uma presidente do partido que justificou o golpe.”

Em sua campanha na busca do terceiro mandato, Cristina decidiu aproximar-se dos militares e, pela primeira vez, aumentou seus soldos em julho. Como uma de suas bases de apoio é a juventude kirchnerista, o Senado argentino começou, no dia 4 de setembro, a debater a redução da idade de voto para 16 anos. Trata-se de uma nova ofensiva para tentar obter uma vitória incontestável nas eleições legislativas de 2013 e, com o controle da Câmara e do Senado, abrir o caminho para mudar a Constituição. Isso significaria a inclusão de 700 mil jovens eleitores, entre 16 e 18 anos, mais sensíveis ao discurso do “tudo pelo social”. O grupo político chamado La Cámpora é liderado pelo filho da presidente, Máximo Kirchner, e comanda ações de doutrinação em escolas e universidades, distribuindo livros com frases de Néstor e Cristina.

Há uma profunda divisão na Argentina. E muito ressentimento. Estive numa ceia familiar em que a avó, de 90 anos, era contra Cristina e abominava o peronismo: “Já vi tudo isso, tantas vezes”. A mãe apoiava a presidente, mas admitia alguns equívocos do governo. E os dois filhos, entre 20 e 30 anos, eram cristinistas apaixonados. Se dependesse deles, ela se perpetuaria no poder, “porque incomoda a elite burguesa”. A família, que se reúne toda terça-feira à noite, decidiu que não se fala mais de política à mesa, porque acaba em briga. “No governo Menem, a vida era mais fácil, éramos todos contra ele”, diz o filho mais velho. “Agora, perdemos amigos, porque estão em lados opostos.” Não há meio-termo com Cristina. Ou você ama ou você odeia.

O escritor e sociólogo argentino Martín Sivak publicou recentemente um artigo no jornal The New York Times em que descreve como está longe de ser cumprida a profecia de Néstor. Ao assumir a Presidência, em 2003, ele prometeu que, no futuro, os argentinos poderiam viver “num país normal”. Eis um trecho do relato de Sivak sobre a realidade atual: “Quando voltei a Buenos Aires, depois de cinco anos fora do país, as forças pró ou anti-Kirchner tinham causado atritos em relações familiares e reorganizado a lista de convidados para o churrasco. Um de meus vizinhos pôs um adesivo junto a sua porta que dizia: ‘Se você é ‘K’, não toque esta campainha’. A quatro quadras de minha casa, abriu o primeiro bar com tema peronista-kirchnerista, que zomba dos líderes da oposição no cardápio”.

Em “Mi Buenos Aires querido”, cidade que nos encanta por suas livrarias antigas, arquitetura art nouveau e neoclássica e restaurantes divinos onde a carne, de tão macia, se parte com a colher, fica a impressão de um tango atravessado na garganta. Com sujeira nas ruas e no metrô, transporte público ineficiente, ampliação do emprego paralelo para 40% dos trabalhadores, índices de pobreza conflitantes (8,8% segundo o governo e 27,3% segundo a Igreja Católica), denúncias persistentes de corrupção em todos os níveis de governo e medo da volta do fascismo, nossos hermanos argentinos sofrem hoje bem mais do que desfrutam.

Revista Época

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