Seu Araújo é um herói anônimo. Pouca gente sabe que o massacre do Carandiru teria sido muito mais grave se ele não estivesse no presídio naquele dia. Carcereiro, ele e seus colegas impediram que a invasão do presídio pela Polícia Militar de São Paulo, que resultou em 111 mortes no pavilhão Nove da cadeia, se disseminasse também pelo pavilhão Oito. Desarmado, Seu Araújo convenceu mais de 1.700 presos reincidentes, soltos no pátio interno e no campo de futebol, a voltarem para suas celas e não aderirem à rebelião. Dessa forma, se protegeriam de uma iminente invasão da PM, que já cercava o presídio para reprimir os presos do Pavilhão Nove. De volta aos corredores do pavilhão Oito, Seu Araújo negociou com os presos, exaltados, que agora apontavam facas afiadíssimas em sua direção. Conversando, os acalmou e os trancou em suas celas. Poucos minutos depois, a PM invadiu o pavilhão Nove, com as consequências conhecidas.
Esse episódio é apenas uma das histórias que Drauzio Varella conta em seu novo livro,Carcereiros (Companhia das Letras, 228 páginas, R$ 32). Treze anos após o lançamento do livro Estação Carandiru, que vendeu mais de 500 mil exemplares, e exatos vinte anos após o massacre (ele aconteceu em 2 de outubro de 1992), Varella volta ao universo das prisões para contar as histórias do Carandiru sob o olhar dos funcionários que lá trabalharam. É a prisão vista do lado de dentro das grades.
Varella trabalhou como médico voluntário no Carandiru por quase 15 anos, período em que conheceu os carcereiros e se tornou até mesmo amigo íntimo de alguns deles. No começo, eles olhavam para o médico com desconfiança. Como alguém poderia escolher ser voluntário em um lugar infernal quanto aquele? A confiança foi conquistada aos poucos. Drauzio só saiu do Carandiru em 2002, ano em que o presídio foi demolido.
Ainda assim, a amizade entre o médico e os carcereiros perdurou. Encontra-se até hoje religiosamente com eles em bares do centro da cidade para colocar a conversa em dia e ouvir os causos que têm para contar. No livro, Drauzio conta as histórias de uma época em que as prisões eram muito diferentes do que são hoje. Antes, os carcereiros ficavam em contato constante com os presos. Conversavam com eles, negociavam, ouviam delações. Havia também abusos físicos e torturas, o lado perverso da intimidade. O carcereiro não era um funcionário contratado somente para abrir e fechar celas. Tinha que desenvolver uma sensibilidade especial para prever uma rebelião, desarticular uma fuga, atuar como justiceiro. Punir e poupar quando fosse necessário.
Naquele enorme presídio localizado na Zona Norte de São Paulo, que o massacre de 1992 e o primeiro livro de Drauzio ajudaram a tornar célebre, acontecia de tudo. Em um capítulo, o novo livro conta a história de Hulk, um carcereiro que interrompeu uma sessão de tortura para salvar um preso prestes a se suicidar. Minutos depois, resolvido o problema, voltou a torturar outro presidiário no pau de arara, a fim de obter uma delação.
Poucos são os carcereiros que entraram na profissão por “vocação”. A maioria, com filhos e mulher para sustentar, foi atraída pela segurança que o emprego como servidor público inspirava. Entraram para o que foi a maior prisão da América Latina sem preparo, sem treinamento. Logo no primeiro dia já interagiam com os presos e aprendiam na marra a dinâmica das relações interpessoais na prisão. Todos passaram por grande transformação. Era difícil voltar para casa após um dia de trabalho e simplesmente esquecer das cenas brutais com que se deparavam. Tornaram-se pessoas mais taciturnas, sozinhas. Menos inocentes. O próprio Drauzio não ficou imune a essa mudança. Por vezes, voltava para casa com imagens assombrosas na cabeça.
Após o massacre do Carandiru em 1992, as prisões paulistas mudaram. Elas passaram a ser comandadas internamente pelo crime organizado e a função dos carcereiros passou a ser abrir e fechar celas. Os carcereiros de longa data lamentaram a mudança. Depois da demolição, Drauzio passou a ser voluntário em um presídio feminino da capital, localizada do lado do antigo Carandiru. O relato de sua experiência com as presas será publicado em Prisioneiras, outro livro, ainda em fase inicial de elaboração. Mais histórias dramáticas estão por vir.
Revista Época
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