segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Um repórter que mudou o jornalismo


REALIZAÇÕES O empresário e jornalista Irineu Marinho nos anos 1920. Ele fundou os jornais A Noite, em 1911, e O Globo, em 1925, com uma visão empresarial e popular. Acima, a primeira página de 2 de março de 1924 de A Noite e a estreia de O Globo, em 29 de (Foto: Bastos Dias/Memória Globo, reproduções Biblioteca Nacional e Ag. O Globo)
O escritor Nélson Rodrigues afirmou numa crônica publicada pelo jornal Correio da Manhã, em 1967: “A Noite foi amada por todo um povo. Ainda vejo um sujeito encostado num lampião, lendo à luz de gás o jornal de Irineu Marinho. Estou certo de que, se saísse em branco, sem uma linha impressa, todos comprariam A Noite da mesma maneira e por amor”. O texto de Nélson lembrava o período de maior popularidade do vespertino carioca: de sua fundação, em 18 de junho de 1911, até março de 1925. Foi quando seu fundador, Irineu Marinho (1876-1925), saiu d’A Noitepara fundar outro jornal, o matutino O Globo, publicado até hoje. A Noite circulou até o fim de 1957. Depois de 1925, porém, já não despertava a paixão no leitor nem exibia as características que fizeram desse jornal um capítulo fundamental – e passional – na história do jornalismo brasileiro.
Fundamental porque estabeleceu as bases da profissionalização das redações e da forma como as notícias eram veiculadas. Passional porque, em seu auge, A Noite empolgou leitores de todas as classes sociais, com reportagens em estilo direto, casos policiais, enquetes e eventos. Começou com uma circulação diária de 10 mil exemplares. Em três anos, saltou para 15 mil. Atingiu 100 mil em 1924. O público apoiava o jornal quase incondicionalmente. Ele se tornara uma ferramenta essencial para entender as mudanças que ocorriam na capital federal, o Rio de Janeiro da Belle Époque, no início do século XX. No livro Irineu Marinho – Imprensa e cidade(Globo Livros, 232 páginas, R$ 48), da socióloga Maria Alice Rezende Carvalho, da PUC-RJ, tal importância está sobejamente documentada. Maria Alice fez sua pesquisa durante dois anos, com o apoio do projeto Memória Globo. O resultado é um volume repleto de documentos, fotografias e ilustrações que narra como Irineu, nascido em Niterói numa família de imigrantes portugueses, tornou-se redator, repórter e depois empresário, inovando na gestão de sua empresa e na apresentação de seu produto, o jornal. O livro deixa claro, também, como Irineu, que plantou a semente das Organizações Globo (o grupo de comunicação que publica ÉPOCA), pagou um preço alto por correr riscos: foi perseguido, preso e exilado. Com saúde frágil, morreu aos 49 anos, sem liderar seu projeto que se revelaria o mais duradouro, O Globo.
Irineu era um animal jornalístico. Adolescente, no Liceu de Humanidades de Niterói, criou o jornal estudantil O Ensaio, publicado em 1892 pelo grêmio literário do colégio. No ano seguinte, contratado como revisor da Gazeta de Notícias, arranjava tempo para escrever reportagens sobre a Revolta da Armada. Em 1893, aceitou o convite de Manoel J. de Oliveira Rocha, o Rochinha, para trabalhar como revisor do vespertino A Notícia. Em 1903, casou-se com Francisca Pisani (dona Chica, filha de imigrantes italianos) e assumiu a direção de uma entidade que reunia um novo tipo de profissional de sucesso: o Círculo dos Repórteres. Até então, os artigos de jornal eram produzidos por literatos. Os repórteres transformaram o jeito de dar notícia. Substituíram a retórica e o linguajar empolado pelo drama da novidade. Em 1904, quando nasceu Roberto, o primeiro de seus cinco filhos, Irineu voltou à Gazeta de Notícias. Assumiu os cargos de repórter, secretário de redação e diretor financeiro. Em julho de 1911, sentiu-se maduro para fundar um jornal. Para reunir o capital necessário para lançar A Noite, associou-se ao empresário Joaquim Marques da Silva, ao dono de teatro Celestino da Silva, ao escritor João do Rio e a colegas daGazeta de Notícias que levou para trabalhar na redação.
Irineu baseou seu projeto em três princípios: a autonomia financeira, a independência partidária e o foco no leitor, com atenção especial para a crítica e para a cultura popular – três ingredientes que, até hoje, persistem no DNA das Organizações Globo. Em A Noite, a notícia se unia ao entretenimento.
Até então, os órgãos de imprensa eram mantidos por partidos políticos e pelo governo. O público se restringia à elite. Jornais não eram vistos como empresas. Ignoravam o gosto popular. Irineu mudou tudo isso. Para gerar receita, A Noite partiu para a conquista do leitor comum, com reportagens de impacto. Com isso, conseguia atrair anunciantes. “O jornal dava resultados do jogo do bicho, ou dos bichos, como se dizia, na primeira página, caprichava no noticiário policial, envolvia-se em problemas da cidade, promovia concursos de beleza”, afirma o historiador José Murilo de Carvalho no prefácio.
Irineu também diversificou os negócios. Investiu na produção de filmes e na promoção da música popular. “Ele praticou um ‘capitalismo de risco’, apostando em novas frentes de atividade”, diz Maria Alice. “Uma vez rico, continuou a demonstrar incompatibilidade com o mundo oligárquico, dominante no cenário brasileiro.”
A Noite era apartidária, mas não apolítica. Sua agenda se pautava pela crítica e pela denúncia. “Foi uma folha antioligárquica, dedicada a criticar o círculo estreito da política, em que não cabiam os novos atores urbanos: operários, balconistas e demais segmentos pobres da cidade”, diz Maria Alice. “Continha um desenho de nação mais inclusiva. Nas primeiras décadas republicanas, ele teve como portadores os civilistas, os tenentes e os comunistas, diferentes expressões da luta contra as oligarquias brasileiras.” Irineu e outros donos de jornal expunham as contradições do antigo regime republicano. O poder respondia proibindo os jornais de circular. O nacionalismo e a simpatia de Irineu por Ruy Barbosa e pelos tenentes lhe renderam prestígio, mas também sofrimento. Ele se refugiou na Legação Argentina, no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Europa e, em 1922, acusado de colaborar com o movimento tenentista, ficou quatro meses preso na Ilha das Cobras.
A instabilidade política teve reflexos nos negócios. Ao partir com a família para a Europa, em 1924 – num autoexílio conveniente também para tratar da saúde –, Irineu vendeu sua parte em A Noiteao sócio Geraldo Rocha (ligado a investidores ingleses), com a garantia de recompra das ações quando voltasse. Passados nove meses, foi obrigado a voltar para lidar com uma crise: Geraldo Rocha o destituíra da presidência. Antigos companheiros, como o caricaturista Vasco Lima, bandearam-se para o lado de Rocha. Irineu não queria briga. Seu filho Roberto, de 20 anos, indignado, topou com Lima no Largo da Carioca e lhe deu dois socos no rosto. “Roberto era bon-vivant e intrépido”, afirma Maria Alice. “Irineu e dona Chica se preocupavam com a sucessão na empresa, já que a saúde de Irineu se agravava, e Roberto era jovem demais para assumir a direção.” Não havia tempo para hesitações. Era preciso mostrar vigor aos concorrentes com um novo jornal livre e vibrante. Em 1925, Irineu promoveu um concurso para a escolha do nome. Venceu Correio da Noite. Como esse nome já fora registrado, o jornal acabou batizado com o segundo colocado, O Globo. Irineu morreu em agosto de 1925, três semanas depois de inaugurar a redação e as oficinas. Seu sucessor na direção foi Eurycles de Matos. Roberto Marinho (1904-2003) aprendeu o ofício com ele e com os jornalistas da redação. Assumiu a empresa seis anos depois, em 1931, em circunstâncias menos desfavoráveis. Segundo Maria Alice, seu ideal de jornalismo independente, sustentável e popular sobrevive ainda hoje na essência que move as Organizações Globo.
Momentos de uma vida agitada (Foto: Memória Globo (2), Biblioteca Nacional (4), Augusto Malta/Museu da imagem e do Som RJ e Ag. O Globo)

Leia um trecho de Irineu Marinho - Imprensa e cidade (Foto: divulgação)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...