sábado, 24 de novembro de 2012

O que é um bom médico?


Todo hospital tem um Dr. Hodad. Mantenha distância

CRISTIANE SEGATTO

CRISTIANE SEGATTO  Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é cristianes@edglobo. (Foto: ÉPOCA)
Em seu primeiro dia como residente da 
Universidade Harvard, o cirurgião americano Martin Makary ouviu uma frase que o marcaria para sempre.

“Esse paciente é do Hodad”, disse um dos residentes.
O jovem Makary, encantado por receber treinamento num dos centros médicos mais respeitados do mundo, mal podia esperar o momento de avistar o astro e, se tudo corresse bem, ser aceito como discípulo.
Mais tarde, envergonhado, confessou ao colega que nunca tinha ouvido falar no cirurgião Hodad. O amigo respondeu:
“Dr. Westchester é Hodad. É assim que nós, os residentes, o chamamos. H-O-D-A-D significa Hands of Death and Destruction (mãos de morte e destruição)”.
O médico era um perigo ambulante. O excesso de autoconfiança o levava a cometer sucessivos erros cirúrgicos. Hodad se achava bom em tudo. Arriscava-se e colocava os doentes ao risco ao realizar operações que não eram sua especialidade.
Os pacientes nem desconfiavam. Agradeciam pelo tratamento recebido e o recomendavam aos amigos. O jovem Makary não entendia como os pacientes podiam ter uma percepção tão equivocada de um cirurgião que, sob o julgamento técnico dos colegas, era ruim.
Conseguiu entender quando passou a acompanhar o médico mais velho nas visitas aos pacientes. Hodad era simpático, divertido, caloroso, bom de conversa. Os pacientes o adoravam. Até quando uma complicação ocorria, o que não era raro, Hodad era capaz de arranjar uma desculpa. Os doentes iam para casa convencidos de que ele não errara e felizes por terem estado em boas mãos.
Do ponto de vista técnico, Hodad era uma fraude. Do ponto de vista de popularidade, era um espetáculo.
No mesmo hospital, trabalhava outro cirurgião. Um grandalhão, de cara amarrada e péssimos modos. Grosseiro, na maior parte das vezes. Sempre pronto a humilhar as enfermeiras e outros funcionários.
Os alunos o chamavam de Raptor. Tinham medo dele. Os pacientes também. Raptor acumulava queixas de maus modos no departamento de atendimento ao cliente. Muitos pediam para ser operados por Hodad, o picareta com fama de excelente médico.
Os observadores bem informados ficavam intrigados com a ironia da situação. Apesar de seu comportamento terrível, Raptor tinha qualidade técnica muito acima da média. A incrível precisão cirúrgica e a insistência de se aproximar da perfeição a cada procedimento fizeram dele o cirurgião de melhor reputação entre os colegas. Até os que odiavam seus modos eram capazes de reconhecer sua superioridade técnica.
Ao longo da carreira, Makary viu chefes de Estado, celebridades, CEOs e outros poderosos caírem nas mãos de gente como Hodad, sem ter a menor ideia do risco que corriam. Viu também moradores de rua operados por brilhantes Raptors, sem desconfiar de que eles eram a elite da profissão.
Essa é uma história universal. Quase todo hospital tem um Hodad e um Raptor. E profissionais de todo tipo entre esses dois perfis extremos. No Brasil, é exatamente assim – sobretudo naqueles que são considerados os melhores hospitais.
Se até os poderosos estão sujeitos aos Hodads, como o cidadão comum pode saber se o profissional e o hospital escolhido é bom mesmo?
Podemos escolher hotéis e restaurantes a partir de critérios técnicos, mas somos impedidos de comparar as diferentes instituições de saúde a partir de parâmetros objetivos.
Qual é o índice de infecção do hospital A? E as taxas de complicação do B? Qual é a sobrevida de quem faz uma cirurgia cardíaca ou um transplante aqui ou ali? Esses dados existem. Pelo menos no grupo de 21 hospitais brasileiros que dispõem de um selo de qualidade emitido por uma entidade chamada Joint Commission International.
Por enquanto, porém, essas informações são guardadas a sete chaves. Ainda que um hospital divulgue um ou outro parâmetro (em geral, o que lhe é favorável), não podemos comparar as diferentes instituições.
Makary defende a divulgação desses dados. E acha que, mais cedo ou mais tarde, ela vai acontecer. Por exigência da sociedade. Hoje o americano é um cirurgião reconhecido e comentarista de redes de TV americana como CNN e Fox News.
Ele defende essa ideia no livro Unaccountable: What Hospitals Won’t Tell You and How Transparency Can Revolutionize Health Care (em português, Sem prestar contas: o que os hospitais não contam e como a transparência pode revolucionar o atendimento à saúde). A obra recém-lançada nos Estados Unidos ainda não tem editora no Brasil.  
“Muitos médicos estão tão frustrados com as perversidades do sistema de saúde quanto os pacientes. Um estudo recente demonstrou que 47% dos médicos americanos sofrem de síndrome de burnout (stress crônico provocado pelas condições de trabalho)”, disse Makary a ÉPOCA. “Acho que meu livro se conecta com essas frustrações."
Na complexa e controversa área da saúde, o livro de Makary é um dos melhores que li recentemente. Uma discussão que faz todo sentido no Brasil. Nos últimos dez anos, a parcela de beneficiários de planos de saúde cresceu 50% no país. Hoje somos 47 milhões.
Nas grandes capitais, as obras de expansão dos hospitais estão por todo lado. Ainda assim, as novas alas são insuficientes para atender tanta gente. Há filas de quatro horas nos pronto-socorros e reclamações constantes. Nesse cenário, a qualidade fica comprometida.
Saber qual hospital zela por ela e qual investe apenas em aparência deveria ser um direito do cidadão. Divido com vocês algumas das observações de Makary:
Operar o paciente errado ou um membro errado é o tipo de coisa que nunca deveria acontecer. Ainda assim, descobrimos que ocorrem 80 erros desse tipo toda semana apenas nos Estados Unidos. Mesmo nos melhores hospitais.

O médico que atende as celebridades não é, necessariamente, melhor que os outros. Alguns se tornam famosos porque executam bem algum tipo de procedimento. São bons em alguma coisa específica. Isso não significa que eles sejam bons em tudo. Um médico pode ter muita experiência em cirurgia cardíaca, mas ele não será a melhor opção se o paciente precisar de uma cirurgia de abdome.
Muitos médicos constroem uma reputação, ficam famosos e depois não se atualizam. É péssimo para o paciente. A melhor forma de escolher um médico é se informar sobre a doença e buscar uma segunda opinião.
Há um movimento para tornar a medicina mais transparente. Sou otimista. Chegará o dia em que os hospitais terão de prestar contas sobre seus resultados (taxa de infecção hospitalar, erros de medicação, complicações etc), do mesmo jeito que prestam contas sobre suas finanças.
Segundo Makary, a nova geração de estudantes pensa diferente da velha guarda da medicina. Insistem em saber, com objetividade, o que de fato ocorre atrás das portas fechadas. Que a informação e o anseio por transparência contamine toda a sociedade. É questão de vida ou morte.
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)
E você? Como escolhe médico e hospital? Já foi vítima deles? Conte pra gente. Queremos ouvir sua opinião.  
Revista Época

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