sexta-feira, 30 de novembro de 2012

CINEMA NACIONAL: Sob a lâmina da derrota

Estreia hoje "Corações Sujos", drama sobre a dor de imigrantes japoneses diante da derrota na II Guerra
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, não era possível afirmar que o medo e a violência haviam sido superados. Enquanto, em panorama, o mundo assumia uma nova configuração política, na intimidade de muitos lares, famílias lutavam para também se acomodar a novas configurações: a falta de parentes, vizinhos, amigos, e a forçada despedida de seu próprio país. Entre os anos de 1945 e 1946, mais de 200 mil imigrantes japoneses habitavam cidades do oeste paulista e do Paraná, formando aquela que se tornaria a maior comunidade japonesa fora do Japão.

O best-seller de Fernando Morais serviu de base para o novo longa-metragem de Vicente Amorim


Ocorre que, para 80% dessa população - reprimida pela polícia, analfabeta na língua portuguesa e proibida por lei de terem acesso a publicações em japonês - a notícia da derrota do Japão nos conflitos da Segunda Guerra Mundial foi recebida como uma farsa. Contra-propaganda inimiga a fim de enfraquecer o orgulho nipônico.

Para estas pessoas, os japoneses que aceitavam a notícia da rendição eram traidores do império. Uma desonra que só poderia ser lavada com sangue. No seio da colônia, esta resolução se transforma em ataque dos vitoristas (ou kachigumi) contra aqueles que aceitavam a derrota (os derrotistas, ou makegumi), apelidados de "corações sujos" pelos seus opositores.

Por cerca de um ano, dezenas de atentados nas cidades que abrigavam as comunidades japonesas em São Paulo desafiaram as autoridades estaduais. A história do conflito passou anos em silêncio, escondida na memória dos imigrantes e nos arquivos embolorados da Justiça paulista. Isto até Fernando Morais - jornalista, consagrado por seus best-sellers de não-ficção - desenterrar esses registros no livro "Corações Sujos", uma extensa reportagem sobre a Shindo Renmei ou Liga do Caminho dos Súditos, a seita nacionalista que aterrorizou a colônia japonesa no Brasil.

De janeiro de 1946 a fevereiro de 1947, os matadores da Shindo Renmei percorreram o Estado de São Paulo realizando atentados que levam à morte 23 imigrantes e deixam cerca de 150 feridos. Em um ano, mais de 30 mil suspeitos dos crimes são presos pelo DOPS, 381 são condenados e 80 são deportados para o Japão. A obra foi lançada no ano 2000 pela Companhia das Letras e conquistou o Prêmio Jabuti de 2001, na categoria não-ficção.

Em meados de 2009, Amorim e sua equipe de produção iniciavam o processo de filmagem que duraria cerca de três anos. Viagens para a escolha de locações, testes de casting e pesquisas iconográficas e históricas. O filme foi feito em 34 dias, em locações nas cidades de Paulínia e Campinas. Para reconstruir a ambiência dos anos 1940, a cidade cenográfica foi integralmente produzida. "As cidades onde essa história se passou: Bastos, Cruz, Presidente Prudente... cresceram muito, então tivemos que reconstruir tudo do zero, vários lugares diferentes", explica o diretor.

Referências

Um dos pontos positivos do filme foi a decisão do diretor de trabalhar com atores japoneses, contratando para isso Yutaka Tachibana, o mesmo preparador de elenco do indicado ao Oscar "Cartas de Iwo Jima". Para "Corações Sujos", Tachibana passou dois meses entre Tóquio, Nova York e São Paulo até achar e testar os protagonistas do filme.

Mesmo os atores nativos mais famosos aceitaram fazer testes de elenco para que o diretor Vicente Amorim tivesse certeza de que se adequariam ao papel.

Aliás, como o próprio diretor admite, "Cartas de Iwo Jima" foi um dos principais referências do longa-metragem. A superprodução dirigida por Clint Eastwood em 2006 foi um exemplo inspirador de produção americana filmada em território nipônico e falada inteiramente em japonês.

Além disso, o ator protagonista, Tsuyoshi Ihara, que vive Takahashi em "Corações Sujos", foi um dos protagonistas de "Cartas de Iwo Jima". Também a adaptação dos diálogos para o japonês ficou a cargo de Yuki Ishimaru, experiente tradutora para o cinema americano que também realizou este trabalho no filme de Clint Eastwood.

"Eu me peguei pensando se seria mesmo possível trabalhar com atores que não falam nem português, nem inglês. Eu não falo japonês. Mas a interação com a intérprete e os muitos ensaios tornaram esse processo mais tranquilo do que eu esperava. Ensaiamos muitas vezes antes de filmar e conversamos sobre tudo: aspectos conceituais, a curva dramática dos personagens, a temperatura da cena... E assim foi muito mais simples. E os atores japoneses são realmente tudo aquilo que dizem: disciplinados, afiados... Criamos uma babel muito feliz", comentou Amorim.

Críticas

Enquanto adaptação livre da obra de Fernando Morais, "Corações Sujos" tem por base muito mais os dramas reais retratados no livro do que o contexto histórico e político, também dissecado por Morais em sua obra. Fia-se na história do fotógrafo Takahashi e de sua esposa, professora de uma escola primária japonesa (e, por isso, clandestina). A transformação de Takahashi em membro vitorista e, consequentemente em assassino, é o fio condutor da narrativa.

Este recorte estabelecido pelo diretor foi considerado, por alguns críticos, um dos maiores problemas do filme, justamente por abrir mão do macro contexto balizador do episódio. O crítico Alysson Oliveira, do Cineweb, atentou, inclusive, para um detalhe que resume a questão: sequer o nome da seita Shindo Renmei é citado no filme. "Não deixa de ser frustrante ver tantas boas histórias desperdiçadas por uma trama que gira em falso, não esclarece nada sobre seus mecanismos internos, transformando os rebeldes num mero grupo de baderneiros ao privá-los de qualquer ideologia mais clara", argumenta Oliveira.

Para Marcelo Hessel, do site de crítica cinematográfica Omelete, um dos aspectos negativos do filme é a tentativa do diretor de se aproximar da estética do cinema japonês. Segundo o crítico, Amorim se perde ao tentar estabelecer uma "meia distância" em alguns planos e, em outros, assumir elementos próprios da cinematografia nacional, como a quantidade de planos. "Essa meia distância procura ter uma suposta austeridade (que seria uma marca japonesa), mas o fato é que manter distância, não se envolver demais, pode ser também uma forma de omissão".

Mais informações:

Corações Sujos, Brasil, 2011. De Vicente Amorim, com Tsuyoshi Lhara, Takako Tokiwa e Eduardo Moscovis. 107 minutos. Salas e horários no caderno Zoeira.

MAYARA DE ARAÚJOREPÓRTER
Diário do Nordeste

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